Projeto vai contra o artigo 5º da Constituição, uma cláusula pétrea que não pode ser modificada nem por leis, nem por PECs
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado deu mais um passo para proibir que advogados e réus por feminicídios aleguem defesa da honra como motivo para atenuar o crime ou absolver alguém. O Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha julgado processo semelhante em março do ano passado, também proibindo o uso desse argumento diante do Tribunal do Júri .A advogada criminalista Jacqueline Valles, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, acredita que a lei é inócua porque o Tribunal do Júri não condena ou absolve réus com base na legislação, mas sim nas convicções pessoais dos jurados. “O corpo de sentença não é formado por juristas, mas sim por cidadãos leigos, que representam o pensamento da sociedade diante de um crime contra a vida. Eles levam em conta suas convicções pessoais para condenar ou absolver e a Constituição não exige nem que ele justifique a sua decisão. Logo, não há como obrigá-lo a julgar com base em dispositivos legais, sem que ele esteja convencido pessoalmente disso”, explica.
No Tribunal do Júri, os jurados representam a sociedade
Segundo a jurista, o projeto de lei se choca com o Artigo 5º da Constituição, uma cláusula pétrea que estabelece as garantias fundamentais e, portanto, não pode ser modificado. O inciso XXXVIII estabelece a plenitude da defesa, ou seja, o direito de usar todos os meios possíveis para convencer os jurados, incluindo argumentos sociológicos, políticos, religiosos e morais. O mesmo inciso também dá soberania aos veredictos do Tribunal do Júri. “É urgente punir com rigor quem agride e mata mulheres, mas isso precisa ser feito dentro das bases da Constituição. No Brasil é comum que os legisladores busquem o caminho mais fácil, criando ou endurecendo leis que fazem muito barulho e dão voto, mas não resolvem o problema. Na prática, não muda nada, porque quando o jurado vota ele não precisa pensar em lei alguma”, diz.
Sem efeitoCom base no projeto de lei, se a defesa ou o réu alegar, diante do Júri, que o homicídio foi cometido em defesa da honra, o juiz deve anular o julgamento e convocar novos jurados para começar tudo de novo. “A Constituição de 1988 estabeleceu que os crimes contra a vida - homicídios e tentativas - são os únicos em que o julgamento final é da sociedade, e não dos magistrados. O jurado representa o povo no julgamento e não é obrigado a conhecer uma linha sequer do Código Penal”, ressalta a especialista em Tribunal do Júri.
Jacqueline Valles reforça que o jurado decide seu voto com base em seus princípios morais e pessoais, a partir das provas apresentadas a ele e dos argumentos da defesa e acusação. “Para que o povo não aceite que uma suposta ‘honra’ seja motivo para matar uma mulher, ele precisa de conscientização. É preciso mudar a mentalidade machista que move os agressores e assassinos de mulheres e faz com que parte da sociedade relativize esse tipo de crime. Temos que educar a população para que ela não tolere qualquer tipo de violência e discriminação. O jurado é uma amostra dessa sociedade. Uma lei que crie programas e ações educativas e de esclarecimento ajudaria muito mais as mulheres do que uma lei inconstitucional”, alerta.
Jacqueline Valles é criminalista e mestre em Dreito Penal
EvoluçãoA advogada lembra que, no passado, não era incomum que réus que mataram por causa de time de futebol, por exemplo, tivessem as penas atenuadas. “Muitas vezes o júri considerava que se tratava de uma briga, em que os dois lados estavam errados, e não só o homicida. Isso resultava em atenuantes que reduziam até um terço da pena. Isso não acontece mais porque a sociedade entendeu que rixa esportiva não é motivo para tirar a vida de alguém. Os jurados passaram a não aceitar mais esse argumento e nem foi preciso mudar lei alguma, a educação e a conscientização mudaram isso. O mesmo exemplo vale para o argumento da defesa da honra, porque se o jurado for machista, não importa o que esteja escrito na lei, ele tende a absolver. “Quando a maioria da sociedade entender que não há honra ou moral que justifique a morte de uma mulher, os jurados também não precisarão de lei para decidir e condenar”, conclui.
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