Por Bruno Cesar Lauer dos Santos Roberto e Ariane Fuller*
Em seu artigo 150, inciso VI, alínea a, a Constituição Federal estabelece que a União, estados, Distrito Federal e municípios não poderão instituir impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros. Esse é o fundamento daquilo que passou a ser conhecido genericamente como imunidade tributária recíproca.
O parágrafo segundo, por sua vez, estende o direito de imunidade tributária às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo poder público, não havendo na Constituição Federal qualquer menção às empresas estatais, sendo a aplicação desse direito a elas decorrente de uma jurisprudência do STF.
Para se ter uma ideia, no início o STF conferiu direito à imunidade tributária às empresas públicas que exerciam prestação de serviços públicos e atividades econômicas considerado monopólio estatal, requisitos que eram atendidos pelos Correios e pela Infraero, consideradas as primeiras estatais a obterem o reconhecimento da imunidade tributária .
Após alguns questionamentos, o STF proferiu o entendimento de que empresas de economia mista não fariam jus à imunidade tributária recíproca, ainda que tivessem por objeto a prestação de um serviço público, por terem inerentemente uma atuação voltada à remuneração de seus acionistas. A título de exemplo, quando se analisou a possibilidade de concessão de imunidade tributária à Sabesp (RE 600.867/SP, Tema 508), o STF compreendeu que a imunidade tributária recíproca não seria aplicável às sociedades de economia mista cuja participação acionária é negociada em bolsas de valores, pois a negociação das ações da companhia estadual de saneamento seria uma forte e irrefutável evidência de que o objetivo da empresa era a remuneração de seus investidores.
Com base nesses precedentes, os pedidos de concessão de imunidade tributária às sociedades de economia mista geralmente são negados no Judiciário. Porém, o STF vem proferindo decisões que, em um primeiro momento, estariam relativizando a vedação até então existente de extensão da imunidade recíproca às sociedades de economia mista.
A exemplo disso, recentemente, o STF julgou procedente a ação ajuizada pela Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso) para reconhecer a imunidade recíproca sobre impostos federais incidentes sobre patrimônio, renda e serviços prestados pela estatal. Na ação, a Deso, apesar de ser uma sociedade de economia mista, sustentou ser uma empresa que explora serviços públicos essenciais e atua em regime de exclusividade para a quase totalidade dos municípios do estado (71 dos 75 municípios de Sergipe). Frisou ainda que, embora seja uma sociedade de economia mista, a empresa tem como acionista majoritário o estado de Sergipe, detentor de 99% das ações.
Na oportunidade, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, compreendeu que a empresa atendia aos requisitos para extensão da imunidade tributária recíproca: prestação de um serviço público; ausência de intenção de obter lucro; e atuação em regime de exclusividade.
O ministro ressaltou que a Deso, diferentemente de outras sociedades de economia mista, desenvolve atividades que constituem serviço público estatal, nos termos do art. 23, IX, da Constituição Federal, ou seja, o abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgotos sanitários. Além disso, foi levado em consideração o fato de a Deso ter atuação exclusiva em 71 dos 75 municípios de Sergipe e de que seu capital social pertence quase integralmente ao estado (99%).
Esta não é a primeira vez que o STF relativiza seus próprios requisitos para concessão de imunidade tributária. Em 2018, foi concedida imunidade tributária recíproca ao Serpro, empresa pública que atua no segmento de processamento de dados e prestação de serviços de tecnologia (ACO 2.658). O entendimento que prevaleceu na corte constitucional foi o de que o Serpro, ao prestar serviços de tratamento de informações e de processamento de dados que visam a modernizar e dar agilidade a setores estratégicos da Administração Pública, com exclusividade, estaria apto a gozar de imunidade tributária.
Analisando-se a jurisprudência do STF, fica a impressão de que os requisitos vêm sendo aplicados de forma bastante flexível. Critérios até então objetivos têm sido relativizados para contemplar algumas situações específicas e excepcionais.
Anteriormente, as sociedades de economia mista tinham o direito à imunidade tributária negado em função da sua qualificação jurídica, pois o simples fato de serem sociedades de economia mista era um indicativo de que a empresa visava à obtenção de lucro e enriquecimento de seus acionistas. Nesses casos, a presunção era absoluta caso a sociedade de economia mista negociasse suas ações na bolsa de valores. Porém, após algumas provocações, o STF passou a proferir decisões estabelecendo que a sociedade de economia mista que tivesse o Estado como acionista majoritário e praticamente exclusivo faria jus à imunidade tributária.
Trata-se, evidentemente, de uma presunção bastante questionável. É possível que sociedades de economia mista, ainda que com participação quase exclusiva do Estado, exerçam atividade com intuito de lucro e enriquecimento patrimonial do Estado, principalmente no setor de saneamento básico, onde a empresa atua como verdadeira contratada dos municípios detentores da titularidade pela prestação dos serviços de saneamento.
Os critérios do STF, na forma como vêm sendo aplicados, poderão gerar problemas de duas ordens: a necessidade de constante acompanhamento da situação fática subjacente à decisão que conferiu a imunidade tributária recíproca; o risco de criar situações não isonômicas e perpetuar distorções econômicas. Atualmente, empresas públicas ou sociedades de economia mista com participação quase exclusiva do Estado que prestam serviços públicos gozam de imunidade tributária recíproca, independentemente das características da sua atuação. Já as sociedades de economia mista com expressiva participação privada não têm o mesmo benefício.
Nesse viés, é possível que empresas estatais com margens elevadas e consistentes de lucro continuem gozando de imunidade tributária. Se formos pensar de maneira mais generalista, a situação é ainda mais preocupante quando essas empresas prestam serviços públicos que não pertencem ao ente público instituidor da companhia, como ocorre no setor de saneamento básico.
*Bruno Cesar Lauer dos Santos Roberto e Ariane Fuller são advogados da área de Contencioso, Arbitragem e Disputas do Machado Meyer Advogados.