Arqueologia da Amazônia: descobertas reescrevem a história da floresta e seus povos
20 Jun, 2022
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Novas evidências mostram que a floresta já foi densamente povoada e ocupou posição central na América pré-colonial
 

Por Fábio Rodrigues, para Um Só Planeta

 

15/06/2022 09h00  

“Eram todas povoadas e, de povoado para povoado, não havia mais que um tiro que de balestra estando, a mais distante delas, a menos de meia légua. E havia um povoado com cinco léguas de comprimento (...) que era uma coisa maravilhosa de se ver” .

Numa tradução livre, foi desta maneira que o frei Gaspar de Carvajal descreveu a paisagem que encontrou às margens dos rios amazônicos ao participar da expedição conduzida por Francisco de Orellana, em 1542. O militar espanhol foi o primeiro europeu a navegar pelos rios Negro e Amazonas.


Durante muito tempo, o relato de Carvajal foi considerado exagerado. A noção de uma Amazônia cheia de gente não batia com o território semiesvaziado encontrado por exploradores de séculos posteriores. Tanto que se cristalizou no imaginário nacional a ideia de que a floresta seria um ambiente inóspito – uma espécie de “inferno verde” –, que demandaria enormes esforços para ser “domada”.

Essa narrativa acabaria justificando uma série de políticas públicas agressivas voltadas à ocupação da região que foram desenvolvidas ao longo do século 20 e, em cuja conta, grande parte da degradação do maior bioma brasileiro pode ser debitada.

 

Uma sequência de descobertas que vêm sendo feitas por arqueólogos ao longo das últimas duas ou três décadas, contudo, tem lançado mais luz sobre a Amazônia pré-colombiana e a relação de simbiose que os povos que a habitaram durante milênios desenvolveram com a floresta. E o quadro que vai se montando está cada vez mais parecido com a descrição do frei Carvajal: com populações maiores e sociedades mais complexas do que se supunha antes.


Atualmente, o consenso é que a população da Amazônia pré-colonial estava numa faixa entre 6 e 10 milhões de pessoas.

 

Novas descobertas mudam olhar sobre a região

 

Segundo a pesquisadora Helena Pinto Lima, do Museu Paraense Emílio Goeldi, houve um aumento no número de descobertas graças à interiorização de universidades – com um número maior de pesquisadores na região -, e à exigência de pesquisas arqueológicas nos processos de licenciamento ambientais de grandes obras. “Houve um aumento impressionante na quantidade de dados sobre sítios de ocupação antiga. Isso reforçou as descrições feitas pelos primeiros viajantes europeus da Amazônia como uma área densamente ocupada”, diz a pesquisadora.


Em maio, por exemplo, foi publicado na revista Nature um estudo de pesquisadores alemães e britânicos que identificaram duas grandes cidades ancestrais na Amazônia boliviana. Os dois sítios, que incluem exemplos de arquitetura monumental, ocupando 147 e 315 hectares, seriam ligados à cultura Casarabe, que dominou uma área de 16 mil km² entre 500 e 1.400 d.C.

 

Poucas semanas antes, a série documental “Amazônia: Arqueologia da Floresta”, do Sesc TV (veja o trailer abaixo), já havia colocado o tema em pauta ao divulgar a pesquisa que vem sendo conduzida no sítio arqueológico de Monte Castelo, em Rondônia, e revelando indícios de como viviam os habitantes da floresta há 6.000 anos.Loading

 
 Adaptações permitiam sociedades complexas

 

“Até a década de 1960, o paradigma básico era que as condições ambientais da Amazônia não permitiriam que as populações se tornassem sedentárias e atingissem densidade suficiente para gerar complexificação social”, explica o diretor adjunto do Museu da Amazônia (Musa), Filippo Stampanoni.

 

Essa ideia estava calcada na noção de que as populações estavam à mercê de seus ambientes e, como os solos da Amazônia são – a despeito da exuberância da floresta – surpreendentemente pobres, as sociedades indígenas acabariam batendo num teto, porque não teriam condições de plantar ou criar animais em quantidades suficientes para sustentar populações mais numerosas.

Este modelo começou a ruir a medida em que mais e mais sítios arqueológicos foram sendo descobertos por toda a região. “Esses sítios eram maiores e mais frequentes do que o modelo preconizava”, afirma Filippo.


Por volta da virada do século 20, o acúmulo de novas evidências levou a comunidade arqueológica brasileira a gravitar em direção a uma abordagem chamada “ecologia histórica”, que leva em consideração que as sociedades humanas têm capacidade de compensar as limitações ambientais adotando estratégias adaptativas apropriadas.

“Dessa forma, não é o ambiente que limita uma sociedade, mas as estratégias que elas conseguem criar”, diz o diretor do Musa, lembrando que o Egito antigo conseguiu sustentar uma população vasta e uma sociedade muito sofisticada apesar de estar numa região árida, onde as terras férteis estavam concentradas numa faixa limitada em torno do Rio Nilo.


 Floresta manejada

 

No caso dos povos amazônicos, a estratégia foi o sistemático manejo da floresta. Há indícios bastante fortes de que partes significativas da Floresta Amazônica como a conhecemos hoje foram ativamente modificadas pelos povos originários. “Não é à toa que tantos castanhais aparecem no entorno de sítios arqueológicos. A arqueologia veio a reconhecer esses legados”, afirma Helena.

Embora os dados disponíveis hoje sejam insuficientes para permitir uma estimativa segura de quanto da floresta atual é resultado de intervenções humanas ancestrais, o resultado é um grande mosaico cultural. “A floresta é nativa, mas, parte dela, é uma construção da ação humana para atender demandas alimentares, culturais e econômicas”, comenta o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Carlos Augusto da Silva.

 

“[Os povos nativos] realizavam um grande diálogo com a floresta”, diz, acrescentando que muitas dessas intervenções eram “altamente planejadas”. “Eles faziam uma ‘poupança’ para as gerações futuras”, diz o professor.

Não quer dizer, necessariamente, que tenha havido uma intencionalidade guiando todo esse processo. Em parte, ele pode ter sido apenas subproduto da própria ocupação das áreas. “Se você mora em uma aldeia, você acaba introduzindo plantas úteis de forma até não intencional, conforme você descarta os restos”, afirma Filippo, destacando, no entanto, que há exemplos de grupos indígenas que modificam a vegetação próxima de suas aldeias para facilitar a caça. “Os dois processos andam de mãos dadas.”


A diversidade sempre foi uma das chaves nessa estratégia. Desde sempre, os indígenas exploraram uma grande variedade de recursos alimentares combinando diferentes cultivares, extrativismo, caça e pesca. “A exploração de amplo espectro sempre foi o modelo amazônico”, diz o arqueólogo do Musa.

 

Outro legado indígena: a terra preta

 

Terra Preta: tipo de especial de solo antropogênico que foi enriquecido com o acúmulo de material orgânico e o carvão produzido pelas atividades cotidianas das aldeias. — Foto: Embrapa/Divulgação
 

O legado deixado pelos povos indígenas na Amazônia não está só na vegetação. Em muitos casos, a própria terra foi modificada pela ocupação humana, dando origem à “terra preta” de índio, um tipo de especial de solo antropogênico que foi enriquecido com o acúmulo de material orgânico e o carvão produzido pelas atividades cotidianas das aldeias. Segundo Filippo, sua existência é um indício a mais de que a ocupação humana da Amazônia foi tão intensa e prolongada que chegou até a “modificar a química do solo em certos locais”.

De tão associadas à presença de sítios arqueológicos, o professor Carlos Augusto brinca que as terras pretas fazem as vezes de “IBGE do passado” na Amazônia. Sua presença tem revelado que a ocupação da região não estava limitada às várzeas dos rios, como muitas vezes se supunha, mas também às áreas mais altas. “Foram encontrados extratos de terra preta em todos os ambientes possíveis”, destaca.


Como são bem mais férteis do que os solos comuns da região, a formação de mancha de terras pretas pode ter sido outro dos mecanismos de adaptação que permitiram aos indígenas furarem o teto imposto pelas condições ambientais. Para Carlos Augusto, foi uma estratégia deliberada. Ele lembra que sua avó, indígena do povo Apurinã, sabia formar terra preta misturando resíduos alimentares domésticos com material orgânico coletado na floresta. “Era um saber ancestral que permitia que eles produzissem [mais alimentos] sem precisar intervir tanto na floresta.”

 

 

Por que não há ruínas em pedras

 

A terra também foi a matéria-prima dos monumentos que os povos amazônicos construíram. Embora não tenham deixado ruínas tão visíveis e dramáticas quanto outros povos antigos das Américas – como os incas e astecas –, os antigos habitantes da Amazônia deixaram seu próprio legado de construções monumentais feitas em terra.

Foi com esse material que foram erguidos, por exemplo, os tesos – aterros artificiais – construídos pelos habitantes da Ilha de Marajó, ou um amplo sistema de terraços artificiais construídos nas Guianas para controlar o fluxo das águas e permitir o plantio em áreas pantanosas, ou até uma pirâmide de 22 metros de altura descoberta recentemente na Bolívia.


O motivo é bastante prosaico. Pedreiras são relativamente raras na Amazônia, o que levou seus habitantes a optarem por outros materiais de construção mais fáceis de obter. Esse foi um fator que contribuiu para invisibilizar os legados desses povos, uma vez que muitas dessas construções acabaram cobertas pela mata e só estão sendo identificadas agora, no meio de imagens aéreas e novas tecnologias capazes de ver através da vegetação.

“Embora o senso comum ainda ligue a ideia de civilizações antigas a monumentos de pedra, isso precisa ser desconstruído. Temos pesquisas fascinantes (...) mostrando grandes monumentos feitos em terra”, explica Helena.

 

 

Domesticação de plantas como mandioca e cacau

 

imageMandioca:Mandioca: indígenas desenvolveram um alimento que é cultivado em mais de uma centena de países. — Foto: Lars Mensel / EyeEm

Manejando a floresta ativamente e criando o próprio solo, os ocupantes da Amazônia foram os responsáveis pela domesticação de plantas que, hoje, têm relevância global. É o que vem revelando pesquisas na área de arqueobotânica e o estudo dos artefatos usados para processar e preparar esses alimentos.

A mandioca talvez seja o exemplo mais conhecido. Partindo de uma planta venenosa, os indígenas desenvolveram um alimento que é cultivado em mais de uma centena de países espalhados por três continentes e cuja produção anual supera a marca dos 300 milhões de toneladas. “A Amazônia foi um locus de inovação na domesticação de plantas desde muito cedo”, afirma Helena.

 

Também foi na Amazônia que o cacau foi domesticado pela primeira vez. Foram os povos mesoamericanos que desenvolveram as primeiras versões do que viria a ser chocolate. Em troca, os indígenas da Amazônia receberam o milho, que acabou se tornando uma das bases de sua alimentação. Isso mostra que a Amazônia era um dos polos numa rede de trocas culturais e comerciais de proporção intercontinental.

“Para termos esse nível de difusão de plantios e transformação das plantas em nível continental, as sociedades tinham que estar interconectadas, e a Amazônia era um grande cordão nessa rede”, opina Filippo

 

Por que essa população mudou

 

Tudo isso começou a ruir com a chegada dos colonizadores europeus. Não existem dados suficientes para que os cientistas tenham entendimento claro do que aconteceu, mas há pouca dúvida de que a mudança foi brutal. “Faltam dados, mas está claro que o processo foi muito traumático”, avalia Filippo.

Exploradores do século 17 já não encontraram uma região tão povoada quanto a que Carvajal havia descrito algumas décadas antes. “O fator mais importante deve ter sido biológico, com a chegada de doenças europeias. E, como as sociedades amazônicas eram muito interconectadas, houve um espalhamento muito grande”, diz ele.

 

Essa também é a hipótese de Helena Lima. Segundo ela, como resposta a esse golpe e a violência colonial, as populações indígenas sobreviventes mudaram radicalmente seu modo de vida original. Foi quando comunidades pequenas e de alta mobilidade se tornaram o padrão dominante na região, colaborando para sedimentar a visão de uma Amazônia pouco apta a sustentar grupos sociais complexos.

“Essas populações ainda estavam impactadas por um enxugamento demográfico e um abalo cultural muito grande”, afirma. “Mas os povos indígenas são um exemplo de resiliência. Sempre tivemos regiões, como o Xingu e Alto Rio Negro, onde sua cultura floresceu”, pondera a pesquisadora do Museu Goeldi.

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